Como Francine Prose nos fala, a respeito do início de muitos contos e romances, é bastante comum encontrar uma decisão ou uma escolha no início da leitura de uma obra. E isso não foi diferente no livro Carne de Mãe, da escritora Mell Renault, que na primeira frase nos fala sobre a decisão negativa de uma escrita de carta.
O começo inclusive, apesar de mostrar uma decisão objetiva, apresenta a palavra “não” por três vezes no mesmo parágrafo e, nas últimas palavras, o verbo “encerrar”. Apesar de não sabermos ainda quem é a remetente e a destinatária, já podemos identificar que a pessoa que poderia receber essa carta já não está mais entre nós.
Trecho da obra ‘Carne de Mãe’
Começo dizendo que isto é e não é uma carta, que te escrevo porque você já não me ouve, já não pode me interromper com seus tapinhas nas minhas costas dizendo “está bem, está bem” a fim de encerrar assuntos dramáticos.
Decidi que precisava disso, um expurgo silencioso, jeito meu de te alcançar mesmo tão longe.
É estranho pensar no que eu costumava repetir. Quando você não estiver mais aqui, mãe. E agora você não está mesmo. Diante da comprovação da finitude, choro e é choro de uma vida inteira.

É interessante perceber também que o início do livro é feito com o verbo “Começo” e parte para uma certa oralidade, feito quem conversa com alguém próximo, trazendo até mesmo uma citação de quem seria a pessoa em questão entre aspas, quando diz “já não pode me interromper com seus tapinhas nas minhas costas dizendo ‘está bem, está bem’ a fim de encerrar assuntos dramáticos”.
Percebemos então não apenas uma proximidade da narradora conosco, que fala em primeira pessoa, mas também da outra personagem com o dia a dia de quem nos fala.
Nos três primeiros parágrafos que marcam o início do livro, a autora utiliza verbos no tempo presente, passado e gerúndio, mostrando que talvez a história não siga uma linearidade temporal bem definida, remetendo à questão de trabalhar com memórias, em que o que lembramos não segue necessariamente uma ordem cronológica e pode se misturar com outros pensamentos e sensações que vivenciamos ao longo do tempo.
Com a leitura, podemos entender que a narradora quer escrever por três motivos: para não ser interrompida (já que a outra pessoa em questão, a quem ela se dirige, não pode mais ouvi-la), e porque percebeu que precisava disso (para expurgar o silêncio e alcançar quem não está mais presente).
Há um paradoxo, então, encontrado nesse início, diante das tantas ambiguidades trazidas não apenas nas negativas e nos opostos trazidos pelas decisões que se contrapõem, mas também no sentido de querer falar por saber que quem lhe interromperia não está mais aqui e, ao mesmo tempo, querer falar por sentir a necessidade de se aproximar e alcançar alguém tão distante.
Somente no terceiro parágrafo, entendemos que a pessoa a quem a narradora designa seu propósito de escrever é a sua mãe. Não conhecemos o nome da narradora nem da sua mãe, intensificando essa relação familiar, afetiva e doméstica entre as duas.
As falas da própria narradora não são colocadas entre aspas, como no trecho: “É estranho pensar no que eu costumava repetir. Quando você não estiver mais aqui, mãe. E agora você não está mesmo.”, que mostra a dúvida sobre um futuro próximo que se concretiza (“quando você não estiver mais aqui, mãe).
A narradora lembra de quando colocava essa suposição nos diálogos com a mãe e percebe que isso agora não é mais algo que pode acontecer, mas que faz parte da sua realidade.
Diante disso, a palavra “choro” aparece como verbo e sinônimo, mostrando a condição desse início, falando “e é choro de uma vida inteira”, que traz mais intensidade ao texto claro e objetivo e, com isso, pode se relacionar à primeira frase, em que ela mostra o receio de receber os tapinhas nas costas no momento de falar assuntos mais densos e dramáticos.
Temas escritos por Mell Renault no romance
Logo no início do livro, diante dos três parágrafos selecionados, percebemos que a obra reúne três temas principais: vida, morte e maternidade.
O livro traz também assuntos que envolvem a relação da filha com a mãe, as características que as uniam e as separavam e o que ficou entreaberto entre memórias, emoções e palavras nesse relacionamento que não permitia diálogos muito profundos e que, ainda assim, não se localizava na parte rasa do oceano de sensações dessa filha que agora deseja contar o que antes fora silenciado.
Esse livro me emocionou do início ao fim, e tenho muita vontade de reler para passar novamente pelos detalhes desse relacionamento que ficam reverberando mesmo após a leitura.
Ficou com interesse de ler essa obra? O livro Carne de Mãe está disponível para leitura no Kindle Unlimited. Aproveita pra ler e depois me conta o que achou!