De quais formas o seu dia a dia envolve os movimentos do seu corpo? Como seria se readaptar à rotina após a perda de uma parte física sua? O livro Anatomia de um quase corpo, o primeiro romance de prosa poética da escritora Yara Fers, fala sobre o que vive e o que morre no nosso corpo e como tudo isso está para além das partes anatômicas de uma pessoa.
Anatomia de um quase corpo
O livro Anatomia de um quase corpo está concorrendo ao 7º Prêmio Kindle de Literatura, está disponível na Amazon e foi uma das melhores leituras que fiz nesse ano. O prefácio, escrito pela escritora e professora de escrita Vanessa Passos, nos mostra que:
Anatomia de um quase corpo traz uma reflexão contundente sobre o corpo-máquina, sobre quando começamos a morrer, ainda que não percebamos, e ainda, sobre olhar não para o que falta, mas para o que permanece. Um livro bonito e poético sobre fazer as pazes consigo mesmo e com a vida, escrito por alguém que conhece tão bem a condição humana e a literatura.
O sumário é uma obra de arte à parte, em que cada título de capítulo também está ali como um verso de poema e, por isso, há um modo de usar no livro, dizendo que podemos ler o sumário como uma forma de seguir em direção às páginas de cada capítulo ou como um poema inteiro.
A prosa poética de Yara Fers
A escrita de Yara dança e corta ao mesmo tempo, nos levando a entrar no corpo da protagonista, vivenciar experiências profundas e sentir a vontade de continuar lendo, se emocionando, querendo saber mais e, ainda, refletir sobre a narrativa para além da leitura.
A leitura do livro Anatomia de um quase corpo acaba, mas a história de Bárbara continua reverberando em nós.
Ausências de um corpo-máquina
Anatomia de um quase corpo aborda reflexões sobre o corpo e a máquina em um cenário de fábrica, onde Bárbara trabalha e perde uma parte do seu corpo durante o ofício. O que sente uma alma dentro de um corpo-máquina amputado e quais movimentos podem ser feitos para além das necessidades e do cotidiano funcional?
durante anos, eu e tantos outros corpos fomos peças desses organismos-máquinas, com nossos suores salgados se mesclando às graxas, nossas mãos velozes concorrendo com as esteiras, nossos uniformes em pequenos rasgos sangrando seus retalhos.
eu sabia que era parte humana parte máquina. um dia esta conexão inevitável se completaria, este ciborgue, este frankenstein, entre mim e a máquina seis.
Após o acidente e a cirurgia no hospital, a médica pede que Bárbara escreva sobre o que aconteceu, sobre o trauma que ela está vivenciando e o acúmulo de pensamentos e emoções que a envolvem. Por meio da escrita, a protagonista tenta investigar as pequenas mortes que surgiram nesse determinado ponto de sua vida:
é preciso despejar no papel esse acúmulo de pequenas mortes diárias que levaram à morte da mão e de alguns sonhos. investigar exatamente em que ponto da vida essa sequência de mortes teve início.
não sei a finalidade dessa investigação. é certo que ela não vai me restaurar a parte que perdi.
(…) a dificuldade em escrever sobre o acidente não está realmente na mecânica das mãos ou da memória. está no mecanismo da ausência.
Assim como há a dificuldade sobre escrever essas novas percepções, a imagem vista no espelho também demonstra outros incômodos e perspectivas de quem ela foi e de quem é hoje, feito quem busca se reconhecer, rememorar tudo o que ela queria ser e se encontrar de novo para além do que se perdeu:
o pedaço que falta nesse corpo é tão pequeno, diante do tamanho total. então por que minha pessoa não cabe mais nele? por que esse pedaço que falta mudou tudo?
às vezes esse corpo parece gritar que ainda é meu, quando sinto as dores. é a carne urrando que ela ainda sou eu, escancarando sua presença. ela briga com a imagem do espelho. a dor na carne repete: esta sou eu. para eu saber que é isso que sou: dor.
(…) como seguir em frente quando os planos se esfarelam? quando o novo corpo é uma casa desabada?
Anatomia de um quase corpo
Ao longo do livro, percebemos a importância da música, da arte, do sonho e das conversas com os colegas da fábrica em momentos de intervalos e refeições para o corpo silenciar o som das máquinas, resgatar o fôlego e se movimentar de forma mais livre: “as pausas podem durar poucos minutos e, ainda assim, alterar a vida de forma irreversível”.
A narrativa do livro Anatomia de um quase corpo, além de contar uma história potente e visceral, fala sobre as rupturas físicas e emocionais, o peso e a leveza entre o tempo do corpo humano e o trabalho com as máquinas, as ausências muitas vezes presentes, e a beleza da escrita e da arte que preenchem não só os dias, mas nos ajudam a enfrentar as dores e ampliar nossos olhos, elaborando outros modos de sentir nosso corpo e as coisas que nos envolvem.
Apesar de trazer um tema tão sensível e doloroso, Yara Fers escreve de forma fluida, ritmada e poética, nos engajando na leitura e nos permitindo pensar sobre trabalho, vida, morte, sociedade, luto, arte, saúde mental, capacitismo, relacionamento lésbico, esperança, dor, entre diversos outros temas tão importantes.
A prosa poética Anatomia de um quase corpo nos prende, nos liberta e nos faz voar ainda mais com suas palavras, histórias e personagens. Conheça a escrita de Yara Fers.
Nossa, esse livro parece muito interessante mesmo. Eu já coloquei na minha lista.
Tudo isso fez muito sentido por aqui, só pela sua resenha, minha cabeça já começou a pensar mil coisas!
Um abraço,
Aline
muito feliz por saber que o post inspirou você a ler o livro, Aline, tenho certeza que vai amar a leitura. obrigada pela visita e pelo comentário! um beijo e um 2023 lindo pra ti! 💐💖